sexta-feira, 15 de julho de 2011

Reportagem da Revista Língua Portuguesa sobre a polêmica do livro didático

Tempestade em copo d'água
Polêmica com livro didático mostra que há muito chão até que a linguagem deixe de ser vista apenas como instrumento de distinção social

Luiz Costa Pereira Junior

Sala de aula composta por jovens e adultos em Campo Limpo, São Paulo (SP): livro ensina tanto a variedade linguística quanto a norma culta
O governo federal descartou o recolhimento do livro didático Por uma Vida Melhor das 4.236 escolas públicas de educação para jovens e adultos que o receberam este ano. A medida é uma resposta ao mal-entendido ocorrido no mês passado, que fez da obra o pivô de um debate sobre o ensino das variedades do idioma adequadas a cada situação comunicativa.

- Evidentemente que não [será recolhido]. Já foi esclarecido que as pessoas que acusaram esse livro não o tinham lido - afirma à Língua o ministro da Educação Fernando Haddad.

O alarde foi provocado por uma reportagem de um portal da internet, no começo de maio, que ganhou repercussão "viral" e atingiu até o Jornal Nacional, da rede Globo. A tônica em todos os meios foi uma só: o Programa Nacional do Livro Didático, do MEC, teria distribuído a cerca de 485 mil estudantes uma publicação que faz a defesa da variante popular, e incorreta, do idioma.

A polêmica com o livro da coleção "Viver, aprender", organizado pela ONG Ação Educativa e publicado pela editora Global, destacou trechos de uma única página:

"Posso falar 'os livro'? Claro que pode, mas dependendo da situação, a pessoa pode ser vítima de preconceito linguístico".

Foi o bastante para uma saraivada de ataques de diversos setores, da Academia Brasileira de Letras a ex-ministros da Educação, políticos da oposição e editoriais de grandes veículos.

O copo d'água ganhava sua tempestade.

Adequação
O livro de Heloisa Ramos, Cláudio Bazzoni e Mirella Laruccia Cleto defende o uso da norma culta, nas situa­ções em que ela seja exigida, e de outras variantes, até da popular, de acordo com seu contexto específico. Língua teve acesso à obra e constatou que ela não diz que é correto falar errado, como foi propagado, mas que cada padrão exigido numa situação comunicativa tem formas adequadas e inadequadas de expressão do idioma.

Muitos consideraram o livro, no entanto, uma defesa do erro de português (alguns chegaram a afirmar que o livro continha erros) e defenderam a exclusividade da norma culta em qualquer situação de comunicação. Surpresa com a repercussão, Heloisa declarou, por meio de nota pública, que o propósito foi discutir o mito de que há apenas uma forma de se falar corretamente.

- Quando há conhecimento das muitas variedades da língua, é possível escolher a que melhor se encaixa ao contexto. Não se aprende a norma de prestígio decorando regras ou procurando significado de palavras no dicionário, mas praticando-a constante e intensamente - afirma.

Parâmetros
A obra foi destinada a 4,2 milhões de adultos e jovens em alfabetização, uma parcela dos 31 milhões de alunos do ensino fundamental, segundo o censo escolar 2010. Um aluno com características próprias, a que se deve ensinar o padrão do idioma sem intimidar, esclarece Vera Masagão, coordenadora executiva da Ação Educativa.

- Acreditamos que, se o aluno toma consciência do modo como ele fala, tem melhores condições de se apropriar da regra e usá-la quando for apropriado. Talvez, quando for falar com seus avós lá na roça, não precisará flexionar todas as palavras, mas quando for pedir um emprego, deverá se esforçar para falar de acordo com a norma, para mostrar ao empregador que a domina.

Pela primeira vez neste ano, esses alunos de EJA (educação de jovens e adultos) receberam obras do PNLD. Com o programa, o MEC submete livros didáticos a especialistas e só então oferece os títulos selecionados a professores e secretarias de Educação, para que façam suas escolhas.

Maria José Foltran, presidente da Abralin (Associação Brasileira de Linguística), divulgou nota pública em que considera o caso como marcado por posicionamentos "virulentos" e "até histéricos", apesar de o livro seguir os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), de 1997.

- Não somente este, mas outros livros didáticos englobam a discussão da variação linguística com o intuito de ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. Portanto, em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada.

Para ela, o fato de o aprendizado ser ou não bem-sucedido não se deve ao ensino de variedades linguísticas.

- O uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento.

Contexto
Um dos desafios do aprendizado de português tem sido a dificuldade de saber qual linguagem usar em determinadas situações e de identificar os diferentes níveis de formalidade, que por sua vez exigem usos específicos do idioma. As pessoas saem da escola sem saber interpretar textos e sem jogo de cintura para expressar-se fora das situações a que estão acostumadas. Isso acontece não só porque a escola ensina mal o padrão, dizem os linguistas. Mas porque o padrão é ensinado como se fosse uma verdade inabalável.

A noção de erro, assim, ganha outra dimensão. É antes usar uma variedade em vez de outra numa situação de comunicação em que a coletividade envolvida desaprova. É usar uma construção sintática que não soaria natural ao idioma ou não seria entendida. Uma dada forma tem regularidade na língua porque adequada à transmissão de uma informação específica num dado contexto. Daí surgirem as regras de uso para cada ocasião. O erro é sempre social e relacionado a quem se destina a mensagem.

Para o linguista Sírio Possenti, professor da Unicamp e colunista de Língua, a celeuma com o livro foi fruto da descontextualização. Uma página da obra teria sido "sistematicamente mal lida" pelos comentaristas. 

- O problema foi destacar trechos isolados do livro e dar-lhes uma interpretação que pode até ser considerada possível, mas não cabia, considerado o texto inteiro - diz.

O ministro Haddad: as pessoas acusaram o livro sem lê-lo
Repercussão

Duas passagens foram alvo dessa estratégia, afirma o linguista. Uma foi aquela em que o livro responde "pode" à pergunta se se pode dizer "Os menino pegam o peixe".

- "Pode" foi lida como se a forma devesse ser ensinada na escola (quando é apenas apresentada e analisada brevemente na obra); poderia ser lida como uma constatação (se os autores escrevessem "muitos dizem" talvez o livro não tivesse sido lido tão grosseiramente); além do mais, está escrito que a escola deve ensinar a norma culta: essa passagem às vezes foi "esquecida" pela imprensa - responde Possenti.

 O outro trecho que provocou confusão, aponta o professor, foi o aviso de que, dependendo da circunstância, poderia ser objeto de preconceito.

- O trecho foi lido como uma defesa do "erro". Mas toda essa grita mostra que há mesmo preconceito...

O linguista divertiu-se com muitas declarações de quem viu no livro uma defesa do erro. Vários analistas, diz Possenti, produziram formas que condenariam, como "Quando eu tava na escola"; "A língua é onde nos une" e "Onde fica as leis de concordância?".

- Uma leitura mais desapaixonada por parte dos leigos em linguística (ou uma leitura técnica de  especialistas) mostraria que o livro trata só da comparação entre duas formas, uma padrão e outra popular, de concordância de gênero e de verbo com sujeito. Um fato absolutamente banal e corriqueiro - afirma ele.

O gramático Ataliba de Castilho, da USP, diz que leituras desfocadas são comuns ante obras do gênero.

- Outro dia li na internet um cara me desancando porque em minha Nova Gramática do Português Brasileiro menciono a variante popular, e o cara entendeu que eu estava dizendo que tudo aquilo agora é "norma" - lembra.

Abordagem
Ataliba considera que, dada a facilidade com que o tema tende a ser mal-interpretado, os linguistas devem redobrar o cuidado na abordagem.

- Talvez a confusão venha do uso, por linguistas, da expressão "norma vernácula", para remeter à língua familiar, não interessando qual o nível sociocultural da família. Como entre nós "norma" tem um sentido muito preciso, arma-se a confusão. Que terá suas vantagens, pois será sempre oportunidade para esclarecer as coisas - diz.

Se quisessem blindar o livro de ataques abaixo da cintura, os autores nem teriam tanto trabalho para reformular a redação, avaliam os especialistas. A resposta à pergunta "Mas posso dizer 'os livro'?" poderia não ser "É claro que pode", mas "Pode, dependendo do tipo de texto que você estiver escrevendo". Do jeito que está a resposta, se tirada do contexto (como foi), pode-se inferir que os autores dizem que a exigência da norma culta é sempre preconceituosa, o que não é verdade nem foi escrito.

Contra a ignorância e o mal-entendido, todo cuidado é pouco.

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